sábado, 12 de dezembro de 2009

Revista Ler

Afonso Cruz (n. 1971) é uma espécie de artista faz-tudo: ilustra livros infantis, realiza filmes de animação, canta e toca na banda de blues/roots The Soaked Lamb, «fabrica a cerveja que bebe» e escreve. Em 2008, publicou um primeiro romance (A Carne de Deus, Bertrand). Agora, oferece-nos uma Enciclopédia de Estória Universal compacta (pouco mais de cem páginas) e que se compraz com a sua evidente falsidade. As dezenas de entradas remetem para 66 referências bibliográficas (quase todas ostensivamente apócrifas) e para uma rede de supostos autores, bizarros e obscuros, que se citam uns aos outros – isto é, que se inventam uns aos outros.
Há sufis, ascetas, santos, cientistas, filósofos, geómetras, arquimandritas, golems, cabalistas. Há ideias recorrentes: a reversibilidade cronológica («o tempo é um livro que pode ser lido do fim para o princípio») e espacial (equivalência dentro/fora e baixo/cima); a estrutura em dupla hélice do ADN; o homem como ser múltiplo. E há uma erudição sem freio, num círculo que abrange Dante, Edwin Abbott Abott, os místicos muçulmanos. A inspiração óbvia e assumida deste exercício literário difícil de classificar é Borges. Numa das entradas, excerto de um sintomático Ensaio Sobre Livros que Raramente Existem, são referidos os «deuses burlões, como Hermes e Mercúrio, como Legbá, Jorge Luis Borges e Toth, esses deuses duplos que se contradizem a eles mesmos, esses porteiros dos Opostos». A este Olimpo, Afonso Cruz acrescenta no comentário final (pela pena de Théophile Morel) o nome de Milorad Pavić, o que faz todo o sentido para quem tenha lido o Dicionário Khazar.
Na sua maioria, os textos da Enciclopédia são ficções curtas, quase sempre escritas num registo solene, prontamente desarmadilhado pelo recurso à ironia e ao humor. Abundam os aforismos. Como estes: «Uma catedral é apenas a maneira mais religiosa de empilhar pedras»; «Todos nós temos dois passados, mas a um deles chamamos futuro»; «A dúvida é o update da certeza»; «Apesar de estar grávida, projectava apenas uma sombra»; «Um triângulo é uma circunferência desenhada com três rectas». Os textos mais belos, porém, são os que se aproximam da perfeição dos contos de Tonino Guerra. Veja-se, por exemplo, Caroço de Cereja: «Distraído, Azizi tinha engolido um caroço de cereja, pouco antes de o anjo da morte – que é todo coberto de olhos – o ter beijado. Depois de morto e enterrado, do corpo de Tal Azizi cresceu uma árvore. Uma bela cerejeira, de madeira escura.»
Com a sua inabalável lógica interna e os seus requintes estilísticos, esta Enciclopédia da Estória Universal é para mim o mais divertido, surpreendente e estimulante dos livros de ficção publicados este ano por autores portugueses.

Avaliação: 8,5/10

[Texto publicado no número 84 da revista Ler]


(José Mário Silva, Bibliotecário de Babel)

Nenhum comentário:

Postar um comentário