sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Excertos da obra exegética do Dr. Morel #3

Numa das entradas (letra B), a psicóloga Emily Richardson afirma que o problema de tantos demónios que andam à solta é somente carência afectiva. Sugere ainda que o Diabo é um anjo que apenas precisa de atenção: com um bocadinho de afecto poderemos ver um monstro transformar-se num anjo, ou um sapo num príncipe.
Esta ideia não é nova: no Segundo Concílio de Constantinopla, em 533 d.C. condenou-se a doutrina de Orígenes, a apocatástase, onde, no final dos tempos, todos os habitantes do Inferno -- incluindo o próprio Diabo -- seriam perdoados.
(Théophile Morel, Ensaio Sobre Livros que Raramente Existem, Paris, 1978)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Excertos da obra exegética do Dr. Morel #2

A primeira versão que me chegou às mãos da Enciclopédia da Estória Universal tinha uma capa com uma ilustração da obra de William Cheselden, erradamente referenciada como pertencendo à obra "De Humani Corporis Fabrica", de Andreas Vesalius.


[Versão antiga da capa]

O esqueleto a rezar pertence à "Osteographia" de Cheselden, como qualquer anatomista sabe. Relativamente a esta ilustração, podia, na folha de rosto, ler-se a seguinte nota:
"Todos os vivos estão mortos, tal como prova o esqueleto dentro deles".


[Ilustração da obra Osteographia, de William Cheselden]

Noutra versão, também ilustrada pela mesma imagem, a nota era outra: "A morte é para o ser humano, o que o caroço é para o fruto e esse caroço é a semente de uma outra vida". Esta última frase vinha assinada por Comenius, mas não pude comprovar a autoria. No entanto, na Didáctica Magna, desse mesmo autor, existe uma parábola que pode explicar esta referência. Nessa obra, Comenius avisa-nos que todo o ser humano vive três vidas. E cada uma é a preparação para a que virá depois. A primeira é a do embrião que vive no útero e vai desenvolvendo um corpo. Tal como Guitton escreveu certa vez, este embrião poderá, muito justamente, duvidar da utilidade daquilo que vê crescer. Se pudesse fazer perguntas, faria estas: Para quê estas mãos se não tenho nada para agarrar? Para quê estes pulmões se não respiro? Para quê estes olhos se não há nada para ver? As respostas estariam, para Comenius, na próxima vida, pós-parto, podemos dizer assim, ou usando a expressão do autor, "na vida debaixo do sol". As mãos -- ou os pulmões ou os olhos -- têm uma função na "vida que há-de vir" e não no presente. Assim, pela mesma lógica, Comenius avisa-nos que esta vida é apenas a antecâmara da próxima e que algumas coisas só no futuro farão sentido.
(Théophile Morel, Ensaio Sobre Livros que Raramente Existem, Paris, 1978)


[Miolo dessa versão da Enciclopédia - Letra A]


[Miolo dessa versão da Enciclopédia - Letra D]

Links para as obras de dois dos autores mencionados:
Andreas Vesalius
William Cheselden

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Último parágrafo da crítica do Ípsilon

«Curiosamente, em algumas livrarias “Enciclopédia da Estória Universal” está na secção de História. Uma ironia que deve agradar a Afonso Cruz.»

A pré-publicação no Bibliotecário de Babel

Chega amanhã às livrarias o novo livro de Afonso Cruz, artista mais do que versátil e capaz de jogar simultaneamente em vários tabuleiros (literatura, música, ilustração). A sua Enciclopédia da Estória Universal, editada pela Quetzal, é uma obra difícil de classificar, um engenhoso e divertidíssimo exercício borgesiano, ao mesmo tempo erudito e lúdico. Deixo-vos aqui seis das muitas dezenas de “entradas”:

ESTE LADO DO ESPELHO
– Levo uma vida normal, Sr. Dr., ando nua pelas ruas, voo de prédio em prédio, as pessoas à minha frente mudam de cara constantemente, mas à noite, Sr. Dr., à noite sonho que me levanto às oito da manhã, saio de casa e vou trabalhar durante oito horas. Tenho uma hora de almoço, como à pressa (por vezes em pé), saio às seis e vou para casa de carro, sempre em filas, vejo televisão e, depois, acordo com suores frios. É horrível, Sr. Dr., isto acontece-me todos os dias, há anos, dum modo absurdamente repetitivo, e isto não vai lá com comprimidos.
– Isso é uma situação normalíssima, minha cara senhora, normalíssima. Nem imagina a quantidade de pessoas que têm esse sonho. Aliás, poderemos mesmo afirmar que esse é o único sonho normal. A senhora vir até aqui queixar-se de coisa tão banal, só prova que está de saúde. No outro dia – nem lhe devia estar a dizer isto – apareceu-me aqui um maluquinho, um caso perdido, que sonhava que trabalhava por conta própria, ficava em casa a maior parte dos dias e viajava muito com subsídios ou lá o que era aquilo. Quando ele me disse isto, transformei-me logo numa porta de mogno e mandei-o sair.
(Agnese Guzman, A Borboleta Taoísta)

INFINITOS
Nicolau de Cusa disse que uma circunferência infinita é uma recta; Dovev Rosenkrantz disse que um homem infinito é aquele que não tem parte de fora; Miroslav Bursa disse que uma casa infinita é uma igreja; Teodoro de Reims dizia que uma bebedeira infinita não dá ressaca; Deus determinou que a justiça eterna é o tempo que os tribunais terrestres levam a despachar os processos; e Malgorzata Zajac disse que uma língua infinita é da porteira do meu prédio.

(DO) LABIRINTO DA VIDA
– Tudo o que é vivo tem um ligeiro cheiro a morto – exclamou Marija de Breslov, parteira de Wilhelm Möller, enquanto lhe cortava o cordão umbilical. Admoestada pelo pai da criança sobre a rudeza da frase, respondeu: – Quando nasce uma criança, Sr. coronel, abre-se uma cova. O cordão umbilical é o que nos liga à origem e não nos deixa perder num labirinto, liga-nos à matriz. É o fio de Ariadne que nos cortam para sermos abandonados à mercê do monstro de Minos, à vida labiríntica. Esse cordão, o umbilical, vai para o lixo e é substituído por outro que começa nas minhas mãos de parteira e termina nas do meu marido. Ele é coveiro.

NEOLIBERALISMO E A MODA
«O grande defeito da direita é esse neoliberalismo animal, que considero uma forma de estar aberrante. O grande defeito da esquerda é essa mania de usar casaco com cotoveleiras.»
(Samuel Lieber, Imagiologia do Estadista)

NOTA PASTORAL
«Uma nuvem é uma maneira mais volátil de dizer rio. Os Abokowo, da bacia amazónica, chamam às nuvens rios-pássaros e dizem que cada rio tem seis margens: a esquerda, a direita, a nascente, a foz, o leito e o céu. Já os Ubitatã, do Sudoeste africano, crêem, muito justamente, que as árvores bebem o mar. Chupam-no de longe e transformam cada golo em nuvem que pastoreiam como se apascentam ovelhas e depois fazem-nas chover conforme a sua sede. Por isso é que não há nuvens no deserto. Nenhuma árvore com bom senso mandaria para lá os seus rebanhos de água.»
(Eugène Faucher, As Margens dos Céus)

PESSIMISMO
Há principalmente duas coisas que se perdem com a idade: a visão e o optimismo. Mas para a primeira existem óculos.
(Malgorzata Zajac, Fragmentos do Espanto)

(link: Bibliotecário de Babel)

domingo, 25 de outubro de 2009

Excertos da obra exegética do Dr. Morel #1

Tudo aponta para que os Viyhokim não passem de mais uma invenção. O nome deste povo parece ser uma corruptela do aramaico que significa: "E Ele o decretou". Este nome aparece, por exemplo, no Antigo Testamento, no Primeiro Livro das Crónicas. A letra "v" inicial é apenas uma conjunção copulativa usada como recurso estilístico. No texto bíblico, este também é o nome de uma das colunas do Templo de Salomão.
Julgo que o uso de um nome aramaico, juntamente com a referência geográfica aos Montes Golã (onde se diz que Noé fez atracar a sua Arca depois do Dilúvio), teriam por objectivo dar alguma credibilidade à existência deste povo.
(Théophile Morel, Ensaio Sobre Livros que Raramente Existem, Paris, 1978)

O storyboard, segunda página

storyboard

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Sapatos e Chapéus

"Os Viyhokim, povo que habita junto aos Montes Golã, na Síria, nunca juntam o chapéu com os sapatos. Acreditam que Deus, no início, começou por criar um chapéu a que chamou «céu». E criou uns sapatos que chamou «Terra». Olhou para o chapéu e para os sapatos e pôs um homem lá no meio, entre o céu e a Terra. É por isso que os sapatos e os chapéus, para os Viyhokim, têm sempre de ter, pelo menos, um homem de distância."
(Enciclopédia da Estória Universal, letra "S")

terça-feira, 20 de outubro de 2009

enciclopedia

Texto da contracapa:

Este é um livro de factos - e de ficções, burlas, citações - esquecidos ou ignorados pela História e encruzilhados uns nos outros em forma de labirinto. Um espaço entre mordomos e coronéis, metáforas, mentiras, assassínios, deuses duplos, cabalistas fabulosos, ascetas hindus e narrativas absolutamente orientais.

«A matemática e a música são exactamente a mesma coisa (exceptuando, talvez, um ou outro sucesso pop). Todavia, num baile em Crotona, Pitágoras percebeu a atroz realidade. A música era capaz de fazer dançar a mais bela rústica, bem como a mais certeira pítia de Delfos. Feito que nunca conseguiria igualar exibindo o seu áspero teorema.»

«Quando se nasce, a nossa morte sai do túmulo, como nós do ventre. Devagar, corcunda e velha, contrasta com a nossa juventude. Nós somos crianças quando ela é uma velha enrugada, fraca e decrépita. E todos nós vamos envelhecendo enquanto ela vai rejuvenescendo. A certa altura da vida, os dois rostos, o nosso e o da nossa morte, cruzam-se e são iguais como num espelho. Acontece por volta dos trinta. Por isso, quando um homem antes de morrer vê a cara da morte, nesse trágico instante, ela tem a cara que nós tínhamos quando saltámos do ventre materno: uma cara de bebé recém-nascido.»